Por Betomenezes
Há uma fonte, lá no alto, em certo lugar da serra. Mina água de dentro da pedra. ¿De onde essa água vem? É segredo e em si encerra. A água engatinha, fina camada dela, que qual cobra se arrasta em busca de outros ventos. A linha logo vira torrente, descendo a serra. Evitando sumidouros, o córrego agora riacho, o riacho agora é ribeiro, o ribeiro agora é rio. E este rio será isso até vir à foz, e depois da foz, a anunciação do oceano fará com que ele, em close, deixe de existir só por si.
E no caminhar deste contínuo d’água, há uma queda: um baque de três homens de altura, um baque na melancolia do rastejar. Como uma torneira no fundo da pia, o que cai quer fraturar as pedras, arrancar uma fissura do vale para assim deixar a cachoeira um pouco maior e depois seguir para o intangível. Prosseguir e deixar que suas irmãs, águas-novas, façam o mesmo, e persista o momento de nada que seria a queda d’água e a faça eterna estática estável, fora o farfalhar da água no pé do das pedras.
E dizem os meninos, aqui embaixo, no povoado, nopé da serra: “¡vamos à cachoeira!”, como se ela fosse um ente; um ser de sua mesma linhagem, lugar onde os seus pais se banharam, seus avós, seus bisavós, e é; eles foramentão para lá, a repetir de maneira única o banhar feito por séculos.¿E a água que passa? a água-que-passa já diz tudo, passa. É célula suicida, abrupta, com mira no ralo do mar. É caspa caindo da pele da terra. É corpo descartável que embala a alma. É corpo exorável que faz sombra à alma. É corpo degradável defronte à sua alma, a sombra.
A sombra da cachoeira não quer saber se a água que lhe faz ser não é a mesma água de ontem, nem da semana passada. A sombra da cachoeira não quer saber da correria líquida, do movimento, de sua história, do seu nascer e do ser porvir. A sombra da cachoeira desde o bisavô do bisavô está ali, intransigente ao tempo. Pode, como toda moça, no verão vir a afinar a cintura, como também se encher de gordura, quando a chuva desce; no entanto, é a mesma alma de cores negras e de silêncio límpido.
Ela seria só um estalo, tempo entre duas sinapses, conta perfeita para definir um instante de nada. Uma sinopse de um movimento de valsa, de um passo com feitio de salsa. No entanto eram tantos repetidos momentos que o fluxo etéreo a priori ganhou cara de eterno estático. O riscado da dança era mais dança que a própria dança, linhas bêbadas do traço do compasso, projeção no chão que se enovelava pelo tablado, entre os pés, como o pó de barro, em reverência, que não se assenta enquanto não acaba de passar a procissão.
A romaria dos meninos fascina a sombra. Faz sombra à fina sutil razão dela existir. ¿De onde vem a sua calma?Do cio da terra que a água traz, do fim que terá se um dia a terra negar o rio de raiar. A sombra balança com vento, a sombra dança mesmo sendo a estátua do fluxo. Sua essência de não ser um ser concreto é sua calma. Esta sombra não pesa, não vela por si. Existe sem precisar correr às duras penas para criar sombras. O segredo da calma das sombras: elas não têm sombra para engordar.
Inspirado no poema O Ofício de Engordar as Sombras de Bruno Gaudêncio
O OFÍCIO DE ENGORDAR AS SOMBRAS
Bruno Gaudêncio
desmentindo o seu próprio segredo
a alma carrega sempre
o ofício de engordar as sombras,
de retornar as coisas
da infância tangível
em um límpido silêncio
de água que flui
na nudez
pura da morte.
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