Por Bruno Gaudêncio
I. Qorpo Santo: um corpo que queria ser santo.
José Joaquim de Campos Leão, mais conhecido como Qorpo-Santo, (1829-1883), pseudônimo que ele próprio se deu em sua mocidade, nasceu na Vila do Triunfo, na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Suas peças levaram cerca de um século para serem encenados, sendo tanto elas, como seus dados biográficos terem chegados aos nossos dias de forma totalmente fragmentada. O motivo, segundo os estudiosos, - dentre eles Euclynir Fraga, - um dos maiores estudiosos de sua obra, - foi à invenção de uma dramaturgia irreverente e de um absoluto desprezo as convenções, ao contrário do Teatro produzido em sua época, marcado pelos costumes convencionais burgueses. Mestre-escola em diversas vilas e cidades do interior do Rio Grande do Sul, Qorpo-Santo casou-se em 1856, tendo quatro filhos. Entre 1862-1864 começou a ter problemas com a justiça, sendo acusado de alienação, o que terminou por conduzi-lo até o Rio de Janeiro, sendo examinado no hospício D. Pedro II (1868). Os médicos diagnosticaram uma exaltação cerebral e uma monomania (caso específico da escrita).
Sua obra foi “desencantada” a cerca de 50 anos por alguns intelectuais do Rio Grande do Sul, através da descoberta de sua incrível Ensiqlopédia qorposantense, que se componha de nove volumes, súmula do seu pensamento e de suas idéias. Nelas habitam vários poemas, reflexões, sobre política, moral, ética jornalística, anúncios, bilhetes, máximas, tudo amontoado sem nenhuma preocupação com a organização. Dos noves volumes que foram editadas nos idos de 1870, apenas seis chegaram até o momento entre nós. Entre estes escritos descobertos está o material de nosso da qual nos serve o olhar, que é considerado a parte de melhor qualidade de sua obra: as peças teatrais.
As dezessete peças existentes encontram-se no volume IV da Ensiqlopédia, e foram escritas entre os dias 31 de janeiro e 16 de maio de 1866. Boa tarde dos textos jamais foi montado. Destaque maior para os textos: Mateus e Mateusa, A Impossibilidade da Santificação e Hoje sou um; e amanhã outro.
Um dos aspectos mais interessantes da obra de Qorpo-Santo foi sua proposta de reforma ortográfica, daí a grafia do seu nome Qorpo e do vocabulário Ensiqlopédia. Abordando temas ousados em relação aos que correntes no seu tempo, tais como: o incesto, o homossexualismo, o adultério, seus personagens, tanto homens, como mulheres, são sujeitos presos em contradições terríveis, amparadas por uma atmosfera caótica e profundamente demarcada por situações de injustiça e angústia. Segundo Euclynir Fraga (2001) “na Dramaturgia de Qorpo-Santo inexiste qualquer preocupação de coerência psicológica na construção das personagens: são personalidades intercambiáveis que mudam de nome sem qualquer necessidade visível, deambulando por espaços inexplicáveis, nos quais o tempo se torna, ele próprio, uma ficção. Por conseguinte, desaparece qualquer tipo de verossimilhança mimética com o que se convenciona denominar “realidade quotidiana”, decorrência, na verdade, da falta de contorno das personagens e do mundo em que transita.”
De acordo com historiador literário Guilhermino César (1971), um dos seus “descobridores”, Qorpo-Santo teria sido o criador do chamado Teatro do absurdo em pleno século XIX, pois as características de sua obra são consideradas modernas, e se comparariam a Ionesco, ou mesmo Jarry. Vejamos como o autor se refere ao dramaturgo gaúcho: “É com toda certeza, o criador do “Teatro do Absurdo”; veio muito antes de um Jarry e de um Vian, precedeu Ionesco na ousadia das soluções. Não conhecemos, em língua portuguesa, ninguém que lhe compare. Embora em muitas vezes não chegue a ser congruente, a ação que imagina, em termos de aliciante inventiva, deixa entrever uma concepção que está atual em qualquer época.”
Na contramão deste pensamento o próprio Euclynir Fraga discorda desta afirmativa. Para o ensaísta as peças teatrais de Qorpo-Santo se assemelham mais as características do surrealismo de André Breton e Duchamp, do quê o do Teatro de Absurdo, de Ionesco e Vian. “Pois no mundo dos sonhos recuperados, do mergulho no insciente, é que deve ser encaixada a obra de Qorpo-Santo”, se refere Euclynir Fraga. Todavia, longe destas tentativas explicativas o que fica claro é um sentido de representar em uma escrita uma crise existencial íntima, apontando os paradigmas e os valores morais da sociedade como fatores principais da crise do homem, em meio à loucura e a razão. Desta maneira, o propósito deste pequeno Ensaio será investigar as representações de gênero feminino no universo do Teatro de Qorpo-Santo, compreendendo assim como esse dramaturgo construiu em suas peças teatrais os diversos processos de relações dinâmicas de gênero.
II. Qorpo Santo: O discurso feminino como representação da conquista de um espaço manifestação.
Na obra de Qorpo Santo (2001) o lugar privilegiado das ações dramáticas é o espaço da casa, ou seja, o da residência familiar, - sendo um recinto de múltiplos conflitos nos quais seus personagens se mostram em verdadeiros dilemas de relações interpessoais. A maior parte das tramas é construída dentro de uma relação familiar simples (pai /mãe / filho (as)), em uma lógica de conflitos discursivos de teor moral e religioso, onde a desrazão se sobressai a razão nas falas dos personagens.
A prioridade quase sempre é dialogo entre o marido e a esposa nas ações familiares. Na peça O Hóspede Atrevido ou o Brilhante Escondido, o autor revela através da voz do personagem principal Ernesto qual deveria ser a função do homem e da mulher na sociedade de sua época. Depois de referir-se ao homem como um ser que teria a função única de produzir serviços ligados a pena, a palavra e a espada, assim Ernesto distingue as mulheres em relação aos homens “Quanto às mulheres, elevam-se e brilham por sua conduta moral, pela obediência, respeito e afeto para com seus pais; pelo recato e honestidade em suas maneiras e em seus vestidos, pela brandura, suavidade e encanto pela sua palavra; pela escolha dos trabalhos mais delicados e dos prazeres inocentes, pelo gosto e pela perseverança nos estudos das pelas artes , belas –artes e de tudo o mais que lhe é próprio e que pode concorrer para que sejam sociais; inteligentes, boas filhas, boas mães, boas esposas e respeitáveis senhoras.”
Em uma outra peça intitulada A Separação de Dois Esposos, Esculápio (protagonista) em mais um conflito de casais refere-se à função primordial da mulher: “È dever das mulheres cuidarem de tudo quanto se acha das portas para dentro, inclusive os maridos”. (QORPO-SANTO, 2001, p. 209). Todavia, esta função de cuidar dos afazeres domésticos, de criar os filhos, de ser dedicada ao marido dificilmente acontece entre as mulheres personagens de Qorpo-Santo. Pois suas posturas radicalizam em suas indignações de falas, a mulher reage a cada discurso do marido, impõe pensamentos, questiona-o a autoridade, inclusive se referindo a prática da infidelidade, como acontece na Peça Mateus e Mateusa, - uma das mais interessantes produzidas pelo dramaturgo gaúcho. Nesta comédia, o mote mais uma vez é o conflito de casais. A traição conjugal parece ser comum numa lógica de escape às perturbações das relações várias da obras. Mateusa é a mulher que se mostra, se revela, e que principalmente que “bate de frente” com o marido. Segundo Lileana Franco de Sá “Para um autor como Qorpo-Santo, que abriu espaço para as minorias em seu teatro, a personagem Mateusa ganhou em qualidade ao fazer essa atualização da mulher do século XIX, para a mulher do século XX.”
Em outra obra, intitulada Relações Naturais o teatro carnavalizado de Qorpo-santo (no sentido de Bakhtin) cria seu espaço social. O lar pode ser bordel e a casa, assim como a rua, mostra-se lugar de perdição. As mulheres da vida não são apenas as prostitutas, mas todas aquelas que conseguem romper com o espaço da casa. Na realidade muitas vezes a mulher segundo Corpo-Santo é uma portadora de pegados, e causa principal da não santificação dos homens, como é caso da peça considerada a mais autobiográfica de todas (A Impossibilidade de Santificação). O personagem C.S se refere assim “Eu te suspenso, mulher maligna, a maldição de eu foste digna. Retira-te, porém, de minha presença; e nunca mais ouses vir insultar a quem só se ocupa em promover o bem geral de todos” (QORPO-SANTO, 2001, p.53). O discurso autobiográfico do personagem que tem as mesmas iniciais do autor demonstra o fato e o processo de interdição movido por sua esposa, e de outro a perseguição que sofreu por suas idéias em relação à arte, e que não eram aceitas pelos grupos intelectuais de seu tempo.
Desta maneira, podemos assim compreender que a mulher no universo teatral de Qorpo-Santo não se situa como virgem romântica, nem como rainha do lar. Longe de encarnar o papel de vítimas do dever, as personagens femininas constroem gestos de briga e de abrigo dentro do espaço terrestre da casa. O discurso feminino toma corpo através da representação da conquista de um espaço manifestação. Portanto, longe das já conhecidas representações do gênero feminino na dramaturgia e na literatura no século XIX, a mulher na obra teatral de Qorpo-Santo possui um discurso feminino como representação da conquista de um espaço manifestação.
Referencias Bibliográficas
CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1971.
FRANCO DE SÁ, Lileana Mourão. A Casa Qorposantense. In: Encontro Regional da ABRALIC 2007. São Paulo, USP, 2007.
QORPO-SANTO. Teatro Completo. Coleção Clássicos do teatro Brasileiro. Fixação. Estudos críticos e notas por Guilermino César. Rio de Janeiro: Serviço nacional l do Teatro/FUNARTE, 1980.
¬¬_____________. Teatro Completo. Apresentação por Euclynir Fraga. São Paulo: Iluminuras, 2001.
Ensaio publicado em 2009 no Correio das Artes (Suplemento Cultural do Jornal A União)
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