quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

UM NARRADOR METAFÓRICO

Por Rinaldo de Fernandes

A morte é um dos temas centrais da literatura. A morte, o amor, a dor. A morte, que tanto nos oprime no seu grande mistério, pode no entanto, e paradoxalmente, através da arte narrativa, do tratamento literário, se tornar algo belo. É o que acontece no conto de Bruno Gaudêncio “Cântico voraz do precipício”.

No conto, a dor e tristeza – e culpa – do personagem-narrador terminam nos comovendo pelo modo como ele vai relatando-as, expondo-as. E que modo é esse? Aquele em que são utilizadas muito apropriadamente metáforas espaciais agregadas a algumas metáforas trágicas.

Trata-se, no caso, de um narrador-poeta, que, para se explicar, para compor seu sofrimento (e sobretudo sua culpa), para narrar o suicídio da ex-namorada Anna (ela, num último encontro, se jogou num precipício), recorre a certas metáforas, a uma descrição preciosa, tirando da paisagem ou do ambiente em que se passa a narrativa os devidos e atrativos (para o leitor) efeitos estéticos.

Assim, o ambiente onde se dá o último encontro do casal, de tão pictórico, é associado pelo personagem-narrador às “montanhas de Monet”. As nuvens se locomovem “como animais na floresta”. As nuvens ainda passam a ser “mata escura e intransponível”. Com o desencontro, o namoro do personagem-narrador com Anna se transforma “numa avenida de tristeza e mágoas, sem carnaval”. Seu discurso para Anna no encontro final, um discurso contundente contra as “utopias” (da paixão?) que ele criara e nas quais ela acreditara, é “um revólver de palavras”.

Há, por outro lado, as pedras do precipício contra as quais o corpo de Anna se chocou – as pedras que não “rasgaram” apenas o corpo da ex-namorada, mas também “trucidaram” o corpo do personagem-narrador. O corpo e, certamente, a alma. Com efeito, é de pedras – pedras que amputam, dilaceram – o presente do personagem-narrador.

Dizendo de outra forma: com o suicídio de Anna diante do personagem-narrador, o mundo deste se desorganiza. Mundo interior revirado, caótico, culpado. É esse clima agônico que, no fim, domina o conto. E uma metáfora definidora disso é aquela em que, ao recuperar o momento trágico, ao rememorar pela escrita o que assistiu, o personagem-narrador afirma, abatido, dilacerado, sempre, não tecer palavras, mas lágrimas. Presume-se que é pela escrita que ele deseja se salvar, conter de algum modo o sangue de sua ferida interior.

“Cântico voraz do precipício” é um exemplo, vindo de um jovem autor, de como combinar os dramas humanos com a boa prosa poética.


Texto produzido pelo Ficcionista, Antologista e Professor Universitário Rinaldo de Fernandes, autor de "Rita no Pomar", entre outros, comentando conto de minha autoria "Cântico Voraz do Precipício", publicado em outubro de 2009 no Suplemento Cultural Correio das Artes.


Nenhum comentário:

Postar um comentário